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Drag Queen: A arte de viver uma vida dupla

Uma reportagem sobre a realidade, a identidade e a sexualidade. 

João Gomes sente que vive uma vida dupla. E são estas as vidas que o constroem enquanto um único ser humano. Nada é mais gratificante do que ter duas perspetivas sobre dois diferentes mundos: o mundo dito "real" e o mundo das artes, ou, mais precisamente, o drag.

 

Esta é uma reportagem que nos fala sobre um modo de vida que, claramente, ainda está longe dos padrões da sociedade. 

 

O ritual já está memorizado: Passa o batom nos lábios, delineando a naturalidade da boca do homem. Sobe o fecho do vestido, ajustando-o ao corpo; aperta o salto alto e desliza as meias de forma a ficar compacta entre as pernas. Tudo isto é realizado com atenção e pormenor ao detalhe. João prepara-se para uma performance; o nome artístico é uma outra identidade própria associada. Podemos até admitir uma certa semelhança com Fernando Pessoa. João é virado para a arte do espetáculo, e o seu heterónimo não se esconde por detrás da tinta do papel. É esta a tinta que ele usa para dar cor à sua diferente personagem. Esta personagem dá a cara todos os fins de semana. E o seu nome artístico é Alejandro.

Ser chique, ser elegante, ser charmoso. Isto é o que representa ser Drag. Ser Drag é uma forma de expressar arte. É um modo de viver. Qualquer um pode sê-lo. O transformismo não consiste somente em colocar um baton nos lábios. É o trabalho; o investimento e o tempo alguns dos fatores cujo envolvimento neste tipo de arte traz humildade e uma diferente perspetiva para quem faz parte do mundo Drag.

"Desde que comecei a sair à noite, já comecei a ver espetáculos de drag Queens e de transformistas em Portugal. Sempre gostei muito, mas nunca tinha tido coragem para o fazer. Depois comecei a namorar com o Bruno, que já era drag queen, e foi assim o meu ponto de partida para entrar no mundo do espetáculo drag."

João Gomes, 28 anos

João Gomes, 28 anos

Estas são as palavras de João Gomes, um rapaz com uma vida normal, nascido no norte. Apaixonado por arte, e com apenas 28 anos, tornou-se designer. Trabalha como freelancer, desenha há oito anos para a empresa Smart Lunch, tem a sua própria marca de roupa e é Drag Queen.

A sua inspiração, a sua musa, digamos, é o feminino. O nu artístico foi uma das suas primeiras paixões no mundo do desenho. Desde muito pequeno que esboça mulheres nuas, o que foi um choque para a sua avó paterna. Por outro lado, a avó materna é mais “open mind”, permitindo assim incentivar este interesse. Oferecia-lhe livros de técnicas de desenho do corpo humano, e, a partir daí, as suas habilidades para o desenho tornaram-se imensuráveis. João também desenvolveu um gosto por desenhar paisagens, mas, para ele, nada se compara ao tracejar do corpo humano, principalmente mulheres. 

Tudo começou por estes desenhos. A partir daí, João começou por se dedicar às danças de salão, e, podemos admitir que, em certa parte, estas danças ainda não saíram da sua rotina. Competiu durante 4 anos, treinando diariamente, o que exigia muito tempo e esforço.

 

O seu sonho? Ser um artista da Broadway. Não há nada que o preencha mais do  que esta possibilidade; a possibilidade de poder exibir o seu talento num dos 40 teatros profissionais localizados na cidade de Nova Iorque. 

“Gosto de lidar com o público, gosto de fazer a performance, gosto de montar a personagem, de me maquilhar, fazer roupas, pensar no espetáculo.”

João Gomes não é licenciado, mas isto não faz muita diferença na sua vida. Tem vários trabalhos e isto permite pagar as contas. Se dependesse somente do design ter uma formação académica podia ajudá-lo no seu currículo. Atualmente não é necessário.

 

A smart lunch é um destes empregos. Inicialmente, João não era designer. Trabalhava na parte do armazém, na etiquetagem dos produtos. Depois surgiu uma oportunidade: a patroa viu alguns dos seus desenhos; precisavam de um designer e aí surgiu a hipótese de subir na sua carreira. 

“Eu já quando dançava tinha algum interesse em vestir o meu par. A rapariga que dançava comigo. Fascinava-me essa parte, mas nunca tinha surgido oportunidade. A nível de confeção e costura não tinha jeito para isso. Eu sou mais da parte do design, do pensar e de decorar as roupas. ”

João Gomes sente esta garra pela moda. Juntou o útil ao agradável quando começou a namorar com Bruno. O seu namorado tem dom para a costura; portanto, João pensa nos vestidos; desenha-os mentalmente e passa-os para o papel. O seu namorado torna-os realidade. “Aos poucos e poucos conseguimos fazer as nossas roupas e criar as nossas peças. Hoje em dia somos conhecidos a nível nacional e trabalhamos de norte a sul do país."  

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As cores das lãs dentro do armário.

"Eu sinto a necessidade de ter um espaço físico para produzir as roupas , ter um atelier."

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​Máquina de costura do casal.

Se não fosse pelo impacto do novo coronavírus, certamente teriam investido mais na sua marca, a GMZ. É a GMZ que os completa enquanto casal. É o dom do desenho e o dom da costura que tornam possível esta marca. Sem um não haveria o outro.

 

Os vestidos são feitos em casa. As quatro paredes daquela pequena sala de estar tornam-se num pequeno ateliê onde encontram-se espalhados os desenhos, os dossiers repletos de cores, os brilhantes e os tecidos para toda a confeção do vestido. “A nossa sala vira quase uma escola de samba na altura do carnaval. Faz parte do trabalho. Temos amigos nossos que nos ajudam quando estamos aflitos com o trabalho.”

Sabe dançar. E foi através de todo este envolvimento com a arte que João decidiu ser Drag Queen. O namorado foi o ponto de partida; mas a paixão já lá estava. Tudo estava encaminhado, e João, aliás Alejandro, abraçou este envolvimento com o seu próprio transformismo. 

O Alejandro existe há cerca de 4 anos. No início, não era mais do que uma personagem. Era João, o bailarino da Naomi (nome artístico do namorado). A personagem foi evoluindo e, um dia, “houve um espetáculo que fiz com a música da Lady Gaga, Alejandro. Teve algum impacto e as pessoas gostaram.”

Fotografias de antigos espetáculos
Fonte: Instagram de @alejandrobeauty

“Não acho que seja importante estarmos a pôr rótulos em cada um, somos drags, ponto final.”

Existem as drag Kings, mulheres que fazem drag vestidas de homem. Por outras palavras, colocam uma barba postiça, achatam o peito e usam peruca de homem. As Bioqueens são mulheres biológicas que fazem drag, ou seja, são uma mulher mais exagerada. E ainda existe as drag Queens, que é o caso do Alejandro. 

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Atualmente, João seria uma das Drag Queens residentes na Posh Club Lisbon, uma das discotecas no centro da cidade onde se aprecia a arte do show drag. Iam também ao London Burlesque Festival durante três dias, que acabou por ser cancelado, se não fosse toda esta situação pandémica.

Na capital, já é possível visitar alguns estabelecimentos onde o Drag torna-se na principal fonte de atração. O Finalmente Club, o Trumps, e o Posh são alguns destes estabelecimentos que acolhem Drag Queens mesmo no coração do Bairro Alto. No LX Factory até já é possível, no Drag Taste, comer um Brunch acompanhado por performances ao vivo com Drag Queens. Outras Drags fazem espetáculos online, mas Alejandro não o quis por não transmitir as mesmas emoções que num espetáculo presencial. 

 

A arte Drag, aos poucos, traz cada vez mais um grande impacto para o mundo das artes. Valoriza-se o feminino. Valoriza-se o trabalho pela construção das vestimentas; pela precisão na maquilhagem e pela dedicação na dança.     

Mas quais são mesmos os marcos mais importantes do mundo drag?

Contudo, há ainda algum preconceito vindo da população em geral. Há quem faça a ligação da Drag Queen a uma transexual prostituta. Mas isso não é verdade. Pensam que a arte drag está conectada com a prostituição e a droga. Talvez “por culpa de muitas drags, principalmente dos anos 80, onde era o auge da loucura, pois iam drogadas e bêbadas para palco, e isso acabou por não dar muito boa imagem à arte drag.”

“Mas eu peço a essas pessoas para verem primeiro e depois criticarem. Mas sim, infelizmente ainda há muito preconceito da arte drag.”

Sabes qual a distinção entre Drag Queen, Transgénero e Travesti?

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Transgénero

​Uma pessoa transgénero não se identifica com o género assinalado no seu nascimento. Podemos admitir que esta palavra, em certos contextos, pode ser sinónima do termo transexual. Este termo pode incluir também pessoas que são não-binárias; ou seja, não se identificam como sendo do sexo masculino ou feminino. Muitos indivíduos transgéneros procuram acompanhamento médico e estético, salientando cirurgias de readequação sexual para adequar o corpo ao género ao qual pertencem. É importante informar que uma pessoa pode ser transgénera mesmo sem ter de passar por estes procedimentos médicos; 

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Drag Queen

Uma Drag Queen é um artista que usa roupas e elementos (como peruca ou maquilhagem) a fim de entreter um público. Normalmente, estes elementos vestuários são frequentemente do género oposto. Porém, isto não define a identidade de género ou orientação sexual de um indivíduo. Portanto, qualquer pessoa pode desempenhar este tipo de arte;

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Travesti

É uma das identidades possíveis dentro do grupo de pessoas transgêneras. A decisão de se reconhecer travesti cabe à própria pessoa, pois é uma expressão de género que difere da que foi designada à pessoa no nascimento. Na maioria das suas expressões, ser travesti manifesta-se em pessoas designadas do género masculino que valorizam a construção do feminino, através do vestuário ou mesmo através de procedimentos estéticos e/ou cirúrgicos.

Imagens retiradas do Adobe Stock

Foi por volta dos 15 anos que João assumiu à sua família e aos seus amigos que era homossexual, mas nunca deixa de ser o João. Nunca mudou a sua maneira de ser. Ser drag, normalmente, não é um estilo de vida muito aceite pelas famílias. Mas a sua aceita. Os amigos também.

Infelizmente, os pais de João nunca tiveram a oportunidade de ver o filho atuar. “Não tem a ver com o terem medo ou não quererem ir. Tem a ver com não terem oportunidade porque os espetáculos são sempre muito tarde e eles têm de trabalhar cedo.”

 

Mas já o viram montado em drag, sobretudo quando tem atuações no norte e maquilha-se em casa. A mãe tem sempre curiosidade em vê-lo: “deixa-me ver como é que tu estás.”, lembra.

“No início acho que tinham um bocado de medo de eu ir trabalhar para uma casa, pois já ia montado para algum sítio. Tinha de estar na rua como Drag. Isso criava-lhes algum medo: “Tens de ter cuidado, olha as pessoas na rua”. Acho que esse era o maior receio da minha família.”, confessa. 

“Já passei por muitas situações de assédio.”

E por falar em assédio, Carolina Gomes é psicóloga, com mestrado integrado em psicologia clínica pelo ISPA. Trabalha como técnica de apoio à vítima na APAV em Cascais.

 

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) é uma instituição de solidariedade social cujo objetivo é o de proteger, informar e auxiliar cidadãos vítimas de crime. 

Carolina Gomes começou na instituição como voluntária, três tardes por semana, e realizou o estágio profissional no gabinete de apoio à vitima de Cascais. Hoje em dia ainda trabalha nesta área tão sensível, ajudando pessoas que necessitam de acompanhamento. 

O assédio é uma das realidades presentes no mundo da instituição. É um conceito bastante complexo e que abrange várias áreas. Sucintamente, Carolina conta-nos um pouco mais sobre este tema: 

O que é Assédio?
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Estamos no dia 22 de junho de 2019. É o dia do Arraial Pride em Lisboa, o dia em que se comemora a diferença para quem é diferente. "Tivemos de chamar cerca de quatro a cinco ubers. Viam-nos montados em drag, a mim e ao meu namorado, e iam-se embora.", desabafa. "Foi uma mulher quem nos levou até ao Terreiro do Paço."

Até que ponto a sociedade que em nós está inserida consegue ser alterada? Vivemos num mundo onde o preconceito reina em vez da liberdade e da força de expressão, Vivemos num mundo onde a diferença é prejudicial.  Vivemos numa sociedade onde o costume sobrepõe-se à liberdade de pensar. 

 

Ser-se drag queen é isto: é a capacidade de enfrentar os hábitos que estão há muito enraizados na população. É preciso força, muita força mesmo, sobretudo numa comunidade composta por muitos estereótipos. E nada requer mais coragem do que ser quem queremos ser. 

"Para mim ser Drag é ser livre; ser único; ser artista; ser feliz. Eu, pelo menos, penso assim enquanto Alejandro."

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Drag Queen: A arte de viver uma vida dupla

Uma reportagem sobre a realidade, a identidade e a sexualidade. 

João tem origem venezuelana. Tem aquele ar latino. O Alejandro começou como uma personagem masculina. Ainda não se desprendeu totalmente dela. “Tive a minha madrinha de espetáculo que gostou e disse que ficava Alejandro.”, conta-nos.

“A minha madrinha foi quem me batizou e deu o nome.” Normalmente as Drags têm uma madrinha, alguém que os acolhe e os ajuda. “Ajuda-nos sempre com alguma coisa, dá-nos uma roupa.”

Mas o nome Alejandro não fica só por isso. Tem um apelido: Beauty. No mundo drag, existem as denominadas “casas”; ou seja, são, digamos, uma família que apoia estas novas personagens que entram para o transformismo. Alejandro faz parte da casa Beauty, tal como o namorado, Naomi Beauty. Torna-se numa espécie de comunidade que apoia os mais variados tipos de drag. 

A vocação de Alejandro passa pelo burlesque, ou adaptando o nome: Draglasque. O draglasque é um conceito relativamente recente. “Aqui, em Portugal, acho que só eu e o Bruno é que o fazemos. E sinceramente é o que eu mais gosto de fazer. Porque sempre gostei da arte do burlesco, da dança burlesca e do cabaret. Poder conciliá-lo com o drag é ótimo.” Para João é como juntar o melhor dos dois mundos. Portanto, é um drag queen a fazer burlesco. É essa a tradução do conceito de draglasque. 

“No burlesco não te despes na totalidade. É um pouco diferente do striptease normal, que as pessoas estão habituadas a ver numa despedida de solteiro ou num bar de strip.”, explica-nos. Há mais sensualidade do que sexualidade no burlesco. Não há muito a diferenciar entre o burlesco tradicional do draglasque; porém, João refere que acha “o mundo das drags um bocadinho pior porque são mulheres com testosterona. Somos um bocado agressivos, às vezes. Mas também vejo muita inveja e competição no mundo do cabaret.” 

Não é só o draglasque um dos vários ramos da arte drag. Qualquer um pode ser drag. E dentro do mundo drag há algumas distinções. 

Reportagem:
Diogo Moniz
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